Retrospecto, por Lúcia Helena Galvão
Lúcia Helena Galvão
Filósofa
17 de maio de 2020
Aos meus dezesseis anos, eu morava em Brasília, concluía o último ano do Ensino Médio e possuía apenas uma amiga. Nossa reputação no colégio era péssima: duas esquisitas. E eles tinham sua dose de razão: duas adolescentes sem nenhum cuidado com a aparência, estudando demais, meio desinteressadas com o que acontecia no mundo à sua volta. Sentadas no gramado do colégio, nós nos perguntávamos: será que somos extraterrestres?
Sem dúvida que aí pesava também o desejo de todo adolescente de se destacar, tomando o caminho inverso, onde a competição é bem menor, e dava certo: de algum jeito, éramos especiais. Mas também havia uma dose de legítima esquisitice: a falta de interesse pela minha aparência converteu-se numa mania teimosa que, em alguma medida, trago comigo ainda hoje.
E havia também minha esquisitice predileta: o interesse pelos detalhes irrelevantes para os demais. Desde um novo formigueiro no jardim até o curioso desenho da rachadura que se abriu na parede, tudo me parecia de alto interesse, e me deixava ali, meio de boca aberta, refletindo a respeito por alguns minutos. Além disso, gostava mesmo de estudar algumas coisas, e estudava, por vezes, bem além do que ia cair na prova, em geral escondida, para não parecer mais esquisita do que já era.
E o que mais? Amava animais (ainda amo) e era “teimosa feito uma mula manca” (gosto de acreditar que melhorei um pouco neste particular). Gostava de dança (fiz um pouco de balé), de piano, de poesia, de coisas belas. E, como muitas adolescentes, salvo aquelas mais “sortudas”, não gostava do rosto que via no espelho, e isso me entristecia um tanto. E acreditava firmemente que jamais algum rapaz se interessaria por mim. Não, as esquisitas não fazem o tipo de ninguém.
O que eu diria, hoje, para a minha querida extraterrestre esquisita dos dezesseis anos? Vamos por partes, começando pelos defeitos: em primeiro lugar, descobri que desleixo com a aparência não tem virtude nenhuma; é só gênero e relaxamento. Portanto, trate de tomar tento e vá pentear os cabelos, cuidar da pele e das roupas. Não deixe essa herança para a Lúcia do futuro, para dar trabalho àquela que terá bem mais problemas do que você em 1979, sempre, daí para a frente. Respeite-se e ame-se por agora e pelo futuro.
Não se interessar pelo mundo dos demais também não te torna um ser especial, apenas alienado e com uma boa dose de egoísmo. Sim, são belos os detalhes da vida, e sempre serão, mas não isole o ser humano da lista de coisas belas! Por que a rota das formigas é mais interessante do que as mil expressões de um rosto humano, suas muitas possibilidades de pensamentos e sentimentos? Essa seleção de interesses esconde fuga e medo: de que e de quem? Ora, vamos: se você é esquisita, o mundo inteiro é, também. Uma feira de esquisitices, a humanidade. Trate de assumir a sua com a devida coragem que o caso exige e aprenda com a ousadia dos outros para driblar e superar seus próprios limites. Vontade de aprender não pode ter “cerquinha” e funcionar só em parte da natureza: é incoerência, das grandes.
Sim, rosto bonito no espelho é interessante e prazeroso, mas você vai entender muito bem os limites do prazer que pode oferecer um rosto bonito recobrindo uma cabeça vazia. E você vai ser bonita também, com essa sua força e teimosia de cavalo chucro, esse seu jeito de querer bisbilhotar todo o conhecimento daquilo que é, do que não é e do que poderia ter sido.
Mais bonita ainda vai ser quando segurar um pouco esse cavalo bravo da teimosia e conduzi-lo numa direção só, fazendo aparecer uma virtude para lá de necessária: a determinação. Ah, que as pessoas vão abrir caminho para te ver passar, arrastando meio mundo agarrado nas crinas, marchando para o fim do arco-íris, ainda que não tenha pote nem de ouro nem de nada. Só pela honra de levar as coisas até o fim, seja lá onde for o fim. Tem gente que vai te ver passar e vai se admirar, outros vão se incomodar, mas tem gente boa que vai rir de gozo: menina birrenta, bonita de se ver! Você tem garra, menina, e isso há de levantar muita poeira, que entrará pelos olhos de alguns!
Importante: esse teu gosto por conhecer, sem aceitar limites nessa tua busca (meu cavalinho chucro sem cabresto!), cuide dele: isso é pedra preciosa. Vai te tornar buscadora do mistério das coisas e de si mesma. Vai te revelar paisagens incríveis, pelas quais muitos passam, mas que poucos veem; vai te abrir as portas de muitas coisas belas e escondidas por trás da banalidade das aparências. Com teu gosto pelo conhecimento e com tua birra, ai das portas que não quiserem se abrir! Mas vai com calma: sem pressa, mas caminhando sempre.
Cuida da tua generosidade. Sabe aquela que te fez querer entregar a boneca ganha no Natal para a menina pobre, na rua, e rendeu uns cascudos em casa? Ela é joia, também. Garanta que seu coração esteja sempre aberto.
Agora, olho vivo para algumas coisas que atrapalham um bocado: mágoa excessiva pelos erros alheios e dificuldade para perdoar. Isso vai virando um fardo de um peso tal que não tem cavalo ou mula de carga que dê conta de arrastar pela vida afora. Vê se faz um esforço para superar isso, que é mais fácil na plasticidade da juventude. Anota bem esta lei que vou te passar, que será de bom proveito. Artigo primeiro: não aceite sentir pena de si mesma, de jeito nenhum, em situação nenhuma. Artigos dois, três, quatro e todos os outros: aconteça o que acontecer, siga o artigo primeiro! Use sua determinação, que é a teimosia domada, para isso, pois ela é forte e dá conta do recado, se você realmente quiser. Portanto, queira!
Desenvolva boa musculatura para segurar suas rédeas, pois raiva e descontrole só causam acidentes, dor e prejuízo. Coisa importante: procure desde já, em você, uma coluna, lá bem no centro, forte feito um rochedo, mas cristalina e cheia de ângulos, como cristal de rocha – a tua verdadeira identidade, a tua essência, apoiada em valores. Uma vez descoberta, amarre-se nela, que nem Ulisses no mastro do seu navio, para se garantir nas ventanias. Previsão do tempo: deixa eu te alertar, futuro é um lugar onde venta, e forte. Agarre-se bem à sua coluna, e fique sem medo. No final, sua ligação com ela vai ser a coisa mais importante da sua vida.
Como último palpite (pois, como dizia a avó, conselho, se fosse bom, não se dava, vendia), não seja chorona, pare já com isso. Poupe seu futuro deste dilúvio inútil, que só gera rugas e olheiras. Quando sofrer, corra para sua caixa de brinquedos, abra, desempoeire cada um deles e volte a brincar com poesia, canções, animais, trilhas de formigas e nó de madeira. Brinque com vontade, até recuperar seu ânimo e sua esperança. Vai voltar tão renovada que vai matar de susto quem te julgava morta.
E pronto: guarda bem tudo isso que te digo e caminha, guria. Vem preparada, que o futuro sempre recebe favoravelmente aos que estão bem equipados para a viagem! Vem e faz bonito!
Este depoimento faz parte do livro Carta para Meu Jovem Eu.
Boa semana! ????
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