De como o rock se traduz
Quando paro pra pensar nos dez livros de rock que traduzi de 2015 pra cá, metade deles para a Belas Letras, com um décimo-primeiro no forno tradutório, parece que sempre há uma ficha nova a cair a respeito da forma como as coisas vão se desdobrando – ou se encaixando como num quebra-cabeça – nos percursos da gente.
Acho que a primeira biografia de banda que li na vida foi uma do Lynyrd Skynyrd, em inglês inclusive, estilo história oral e tal, lá pelo início dos anos 2000. Ou talvez uma do George Harrison, também em inglês, que apesar de não muito aprofundada, era sobre um ídolo. Teve ainda uma do Bob Dylan, essa traduzida, e de outro ídolo-mor, mas acho que foi um pouco depois disso. Enfim, uma dessas três, agora a memória me falha, mas digamos que delas em diante me tornei um leitor ávido de títulos como esses – e em especial dos que tratavam de rock, que foi, sem sombra de dúvida, a presença cultural mais forte na minha formação, visão de mundo, aquela coisa toda.
Quase uma década depois, ao me formar bacharel em tradução, em 2008, já tinha uma coisa certa em mente, queria trabalhar com livros. Assim, de um jeito bem aberto mesmo, “livros”. E pois é, esse curso existia, um braço do curso de letras, talvez ainda exista, mas enfim, os meandros da tradução editorial não são exatamente algo que a gente aprende na universidade, porém, eis que me vi trabalhando com livros, de fato, num pequeno estúdio editorial, e entre um guia turístico aqui, uma obra infanto-juvenil ali, me deparei com os primeiros títulos “de música” dos quais fui co-tradutor. Lá estava eu começando a me aventurar a trazer os relatos e um pouco dos universos particulares de bandas e músicos para o português.
Era um desdobramento – ou um encaixe – que fazia todo sentido: a parte das letras, das palavras, já era ofício, mas a música e o rock eram, antes de tudo, um combustível, um estímulo quase visceral, e agora os dois se entrelaçavam. Particularmente, não sou lá tão fã do termo “fã”, mas, diga-se de passagem, é desse tipo de relação passional mesmo que a gente tira um know-how muito particular, o que pra um tradutor é muito especial poder compartilhar e contribuir ainda mais na publicação da obra na chamada “língua de chegada”.
Quem fuça nas minhas playlists do Spotify, na minha coleção de discos e até no meu guarda-roupa pode notar facilmente que tenho, bem da verdade, pouquíssimo filtro em relação a vertentes X ou Y de rock. Porém, voltando a fita lá pra meados dos anos 1990, eu, que só entendi o grunge tardiamente, tinha um certo apreço pelo infame hair metal oitentista a ponto de adorar irritar os meus amigos que não gostavam de nada daquilo. Lembro da primeira vez que vi numa livraria o The Dirt, do Mötley Crüe, a edição original hardcover, no ano do lançamento, 2001. A capa vermelha com a garrafa de Jack, aquela fonte, tudo parecia muito marcante, icônico até. Só fui ler alguns anos depois, quando já nem me ligava tanto mais naquele estilo, mas deu pra entender por que o livro foi uma espécie de divisor de águas nas biografias de rock, ame ou odeie a banda. Era mesmo “A Sujeira”, extrapolava em todos os níveis os clichês de “sexo, drogas e rock’n’roll”, das formas escancaradas e até caricatas – isso quando não pura e simplesmente ultrajantes e pesadas.
Corta pra 2019 e o lançamento do filme The Dirt, da Netflix, que volta a chamar atenção ao livro e ao próprio Mötley Crüe, que inevitavelmente voltou a figurar nas conversas sobre música. Foi numa dessas que tirei o original da prateleira e pensei que era curioso o livro até então nunca ter sido lançado em português. Qual não foi a minha surpresa ao abrir o e-mail da editora Fernanda Fedrizzi, alguns meses depois, com a proposta de uma nova tradução para a Belas Letras: o próprio The Dirt. Embora fosse uma paisagem já bem distante no meu mapa musical particular, topei sem pensar duas vezes, afinal, o livro era, por bem ou por mal, um marco dentro desse nicho de “literatura de rock”. Revisitá-lo, agora para traduzir, foi tanto uma viagem nostálgica quanto uma espécie de fechamento de um ciclo, do eu-leitor ao eu-tradutor.
Em meio às passagens mais seriamente problemáticas, sob uma ótica atual, vinte anos depois do lançamento original, foi interessante refletir sobre como aquilo que é exposto ali talvez possa servir, hoje, para o leitor entusiasta, quem sabe, repensar a mitologia em torno dos excessos e da decadência daquele período – já que uma das cartas na manga do livro é justamente revelar o retrato nu e cru, por mais insalubre que seja o conteúdo e por mais infames que sejam as desventuras ali contadas. Foi curioso tentar buscar um tom para a narrativa de cada um dos integrantes, mesmo que apenas em pequenos detalhes. E redescobrir, por exemplo, que o álbum de estreia, Too Fast for Love, é um discão que mescla punk com glam e power pop, tem verdadeiras pérolas compostas pelo Nikki Sixx que flertam com Cheap Trick e Sweet. E, ainda, que o Mick Mars ainda é o meu favorito dos Mötleys, com aquele clima de guitarrista-bruxo. Um ciclo, enfim, que acredito ter fechado com satisfação – e com o Mötley Crüe liderando a lista de mais tocados do meu Spotify de 2019, já que enquanto trabalho num livro, a trilha sonora é invariavelmente o próprio artista.
Alguns meses e mais uma proposta depois, fazer a nova tradução para o português do Diários da Heroína do Nikki Sixx foi uma espécie de apêndice desse ciclo, e uma viagem pesada dentro de uma mente perturbada pelo vício, que, felizmente – spoiler – acaba bem, embora seja uma história de terror e tanto – além de um baita alerta, ou assim esperamos. Procurar imprimir o tom pessoal dos diários de um rock star tão atormentado como o Nikki Sixx pro português foi mais um desafio desse processo, para mim fascinante, da tradução de memórias, biografias e autobiografias de músicos – assim como foi tentar entender a perspectiva de um frontman de punk rock às voltas com a paternidade, a mente de um visionário hippie que concebeu o mais importante e histórico dos festivais de música e as viagens poéticas de um certo baixista genial e inquieto.
Talvez eu ainda não possa dar spoilers do próximo livro, mas definitivamente espero conseguir apresentá-lo em palavras que venham a ser de um modo ou de outro transformadoras, como se deve esperar do melhor rock ‘n’ roll.
Paulo Alves é tradutor, mestre em Letras pela USP, foi revisor da CULT e é guitarrista das bandas Bad Canadians e The Parking Lots. Tem Ricardo como nome do meio, mas nasceu antes de o RPM sequer lançar um compacto, portanto, @notpauloricardo.